2 de dez. de 2011

1968 - TEMPOS BICUDOS

Estávamos jogando aqueles jogos próprios das crianças da época. Bolinhas de gude. Futebol de botão. Bafo com figurinhas colecionáveis etc.

Um estrondo interrompeu as brincadeiras bem no final da tarde quando as luzes da cidade já estavam acesas. Todos acorreram à avenida principal para ver o que havia de tão extraordinário.

Um caminhão basculante estava destroçado num poste bem na entrada do pequeno túnel formado pela linha do trem que passava acima da avenida. Outros postes faiscavam por causa dos fios em curto circuito espalhados pela ruas.

Era necessário cautela das pessoas curiosas que queriam ver o que de fato aconteceu. Alguns diziam que o caminhão, ocupado por criminosos armados, estava em rota de fuga da polícia.

Aqueles tempos eram de apreensão e medo. Eu não entendia muito bem isso mas sentia no semblante das pessoas. As histórias que ouvia os adultos contar, enquanto brincava ao lado deles, eram de arrepiar.

Certa vez, naqueles mesmos trilhos que cruzavam a avenida em cima do túnel, ocorreu um atropelamento de duas pessoas. Diziam que não teria sido acidente e sim obra de um grupo de justiceiros que eliminavam bandidos para facilitar o trabalho da polícia. Claro fui com a turma conferir de perto e vimos os vestígios de sangue espalhados pelos dormentes. Embora causasse um mal estar, respirávamos fundo e suportávamos sem deixar transparecer. Senão, o que iam pensar? Também, de outra feita, apareceu lá na rua, uma mulher toda inchada com o rosto que era uma pústula de tantos hematomas e outros ferimentos. Os comentários davam conta de que ela teria sido violentada por um tarado que vagava pelas redondezas que logo apareceria morto também, sob circunstâncias misteriosas. Certamente, as mulheres viviam preocupadas e evitavam passar por lugares ermos e inóspitos, mormente, nas proximidades de algum matagal.

Não sabia se era assim em todo lugar ou se aquele bairro era violento mesmo. Não tinha discernimento para tanto, mas os fatos inusitados deixavam sim a impressão de que ali não era o paraiso celestial ou era fruto de algo maior que eu não entendia bem. O cachorro da vizinha, um pastor alemão, havia sido inicialmente baleado e, posteriormente, tendo sobrevivido, apareceu morto ao ter ingerido carne envenenada. Também sabia-se do dono de um comércio local que era odiado e temido porque gostava de carne de gato e notava-se que, misteriosamente, os felinos desapareciam um a um. Quem tinha o seu, em sinal de temeridade, aprisionava-o em casa.

Estávamos há pouco menos de um ano antes da copa do mundo de 1970 e todo mundo só falava em futebol.

(memórias de um garoto de 8 anos, recém-chegado em São Paulo)

2 comentários:

  1. Hummm,interessante o que se conserva na memória de um garoto de 8 anos. Muito bom!

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  2. quantas reminiscências.....gosto mais assim.

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